No Túmulo de Christian Rosencreutz


Uma Hermenêutica


Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à noite que nos a Alma obstrui,


Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.


Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adão Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador,


Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, ‘Sprito Seu, Lha veda;
Aquém não o há no Mundo, Corpo Seu.


Neste poema de Fernando Pessoa estão contidas ideias profundas que vão ao encontro da escola de pensamento que é a Fraternidade Rosacruz. Assim, ao evocar a figura do seu Pai Fundador, Christian Rosencreutz, o vate português permite-se tecer uma verdadeira filosofia de tratado, em poucas e esparsas palavras, condensando por exemplo nos seus versos as Grandes Hierarquias que procedem do tríplice Ser Supremo, que reverenciamos com o nome de Deus ou Grande Arquitecto do Universo explicadas já por Max Heindel no Conceito Rosacruz do Cosmo.

(...)

Pessoa interroga-se se mesmo totalmente despertos seremos capazes de apreender os mistérios da queda do espírito até ao corpo físico. Queda que ele vê como uma descida até à noite, à treva, à ignorância, que é do tamanho de Deus por desvelar. Interroga-se o poeta se alguma vez: “Conheceremos pois toda a escondida / Verdade do que é tudo que há ou flui?”. Face à inacessibilidade inerente ao género humano em evolução de ter consciência do inacessível reino de Deus, o reino de Kether da Kabbalah judaica, a resposta é um: “Não: nem na Alma livre é conhecida...”

Afirma mesmo que: “Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.” Estamos perante uma afirmação que faz da Verdade uma infinita descoberta, que nem Deus, o deste plano cósmico, a detém pois é a consciência de Si Mesmo que procura, consciência essa que se estende pelos vários Dias de Manifestação onde se evolui gradativamente por involuções, evoluções e revoluções constantes1.

Prossegue então com esta frase sublime: “Deus é o Homem de outro Deus maior”: Pessoa, detentor de uma intuição filosófica e abstracta muito apurada, vem ao encontro do que diz Max Heindel acerca das Grandes Hierarquias, dos Sete Grandes Logos, que provêm do Ser Supremo, subdividindo-se pelos Sete Planos Cósmicos de forma ‘quase infinita’2. Isto tudo implicitamente dentro de uma perspectiva de evolução que vai do Homem para Deus sendo Deus um ser altamente evoluído que também está em permanente evolução, tal como o ser humano, até atingir a face de outro Deus ainda mais evoluído e assim sucessivamente numa escala evolutiva infinita que em espiral contínua flui no porvir cumprindo-se até ao último Dia de Manifestação.

(...)

Pode extrai-se nos versos seguintes que: “Adão Supremo, também teve Queda; /Também, como foi nosso Criador,”. Esta queda, dos mundos superiores para a matéria densa, é, segundo Max Heindel, um ciclo perpétuo que nos leva do mineral ao vegetal, do vegetal ao animal, do animal ao homem, do homem aos deuses, culminando em Deus, na Cristificação, toda uma demanda peregrina em busca da experiência, da evolução consciente, da perfeição inatingível que, degrau a degrau, leva o ser humano a regenerar-se elevando-se para propósitos mais elevados e superiores. Coincidindo com os ensinamentos rosacrucianos, os anjos já foram humanos, os humanos já foram animais, os animais já foram vegetais, os vegetais já foram minerais, e os minerais já foram espíritos virginais partindo sempre da inconsciência até à suprema consciência dos seres mais elevados dentro desta perfeita ordem no caos, a hierarquia divina, a escada de Jacob dirigida e planeada com propósitos evolutivos pelo Grande Arquitecto do Universo que está além de toda a humana compreensão. Nos versos finais temos: “Também, como foi nosso Criador, / Foi criado, e a Verdade lhe morreu...”. Deus, para obter consciência de Si Mesmo criou os Espíritos Virginais, as chispas divinas, que, na Queda pelos sucessivos Planos Cósmicos, perderam toda a Verdade da sua origem. “... e a Verdade lhe morreu...” Resta-lhes então o impulso evolutivo de regresso ás origens, uma “re-ligação” que a seu tempo os fará “lembrar” aprendendo segundo uma terminologia Platónica, a peregrinação pelos vários mundos até atingirem a meta na “individuação” de que nos fala C.G. Jung, da “Grande Obra” de que nos falam os alquimistas, da “Cristificação” de que nos fala Max Heindel.

A primeira parte deste poema conclui-se com os seguintes versos: “De além o Abismo, ‘Sprito Seu, Lha veda; / Aquém não o há no Mundo, Corpo Seu.”

Aqui podemos concluir que o espírito face ao Abismo da totalidade a abarcar, quase votado ao abandono pelas sucessivas eras de escuridão, no esquecimento da sua origem divina a maior parte das vezes, não pode, de facto, saber conscientemente a ponta do iceberg do plano divino, limitado que está por si mesmo, pela sua condição humana que é tão pequena face ao Absoluto ainda por conquistar.

(...)

Assim, de facto, como nos diz o verso final do poema completo, “Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.” Porque a inefabilidade dificilmente se expressa por palavras e por vezes esta está além de símbolos redutores, o aspirante à vida superior conhece e cala por serem intraduzíveis tais conhecimentos.

No Túmulo de Christian Rosencreutz, temos em rasgos geniais, todo um pensamento escatológico e teológico que Pessoa, um vate português, soube tão bem recriar em versos simples cujas imagens inclusas são verdadeiras viagens aos reinos mais abstractos e remotos da psique humana que coincidem, conscientemente ou não, com o que é ensinado nessa verdadeira escola de pensamento que é a Fraternidade Rosacruz.

(Resumo do texto publicado)

Marco A. Oliveira

 

Notas

1 Heindel, Max; Conceito Rosacruz do Cosmo, 3ª edição, 1989, Cap. VII, “O Caminho da Evolução”.
2 Heindel, Max; Conceito Rosacruz do Cosmo, 3ª edição, 1989, Cap. V, “Relação do Homem com Deus”, p. 143 a 145


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