Este escrito chama-se 'Isto'.
É a história de alguém que acorda de manhã e vê o novo dia que chegou.



Isto – 26/9/2016




Amanhece.

Deus dá o imenso a quem o vê.

A manhã submerge da escuridão trazendo os sons usuais de quem acorda estremunhado vindo de um mundo de sonho de onde caiu no que diz ser acordado mas que foi de facto outro sonho para onde caiu e que sempre continua em qualquer lado.

Ele desperta para este mundo com a estranha sensação de já ter visto tudo.

Amanhece.

O corpo entranha-se de mundo físico, de desejos e impressões, de suaves perceções que aparecem como ondas do mar, vagas leves a rolar repetindo-se irrepetíveis na vastidão do som e do espaço.

Amanhece.

Acordou com o céu e o sol a abrirem-se dos montes a nascente como uma forte torrente de emoção e plenitude. Tudo estava no seu devido lugar, como sempre esteve e estará, pensou breve, enquanto via o nascer do sol a dedilhar raios de luz por entre os montes e o azul indefinido, que todo o tempo era uma sucessão de acontecimentos, movidos no correr de um rio, levados na correnteza das suas águas agitadas, embalados por uma força desconhecida que se desenrolava rolando e rolando numa aspiração de chegar ao mar, e talvez lá parar e unir-se com o vasto imenso, que mais não é que o saber que o tempo e nós somos fundos, profundos imersos num silêncio ensurdecedor, a escutar a vida do tempo no fundo do mar, subindo por correntes do pensamento até sairmos das águas e sermos o vento, agitando-se como o espírito que não sabe de onde vem nem para onde vai, até se fundir com o sol de luz fina, dedilhando uma suave melodia em quem acorda, tudo olha e tudo esquece.

Amanhece.

Tudo o mais acontece como tem de acontecer, no fundo superficialmente a amanhecer, sucessivamente pelas ondas do espaço, ele enche-se de ar e abre os braços em abraço, sorve a plenitude do sol, da manhã e do que vier a acontecer, será sempre e apenas o rio de si em si mesmo a correr, levado não criado como águas num espelho luminoso, o tempo é algo que se espalha como a luz num lugar sombreado.
Ficou a olhar o sol e deixou-se ficar um bocado demorando-se nisto, sei que estou aqui, sei que existo, viver é algo que sou e que vivendo insisto… Pensa nestas coisas como que dizendo uma prece. Pensa nestas coisas como que interiormente dissesse as palavras mágicas de uma prece.

Amanhece.

A luz entrecortou o sol e o seu pensamento. O que lembrou de ontem foi apenas um momento. O agora e o futuro é uma luz abrindo-se no escuro. E vai e vem como as ondas do mar todo o seu pensar. Todo o repetir-se do pensar e do acontecer no mundo que os seus olhos vêm. Isto está a parecer um imenso teatro, um imenso teatro onde ajo e atuo. Já não penso, flutuo. Sou vaga de mar repetindo-me devagar, espraiando-me em espuma a enrolar e desfiando-me em sonho areais dentro. Bóio ausente num tempo que me esquece.

Amanhece.

No encanto de viver pelo tempo fundo minha alma viaja como se o mundo fosse apenas um espelho que reflete o meu e outros mundos sempre que a alma embarca numa barca onde no mar lento se desvanece, e que num fumo deixa de ser mar para ser apenas o escuro universo que num longínquo eco aparece, e minha barca está parada na terra ressecada e o universo em cima se abre e transparece em estrelas sem fim e sois que só agora o olhar descobriu neste olhar que tudo aquece. Sinto isto e o mundo acontece.

Amanhece.

O tempo é algo que me esquece. Olho com o olhar as coisas rudes e de súbito meu olhar muda a beleza das coisas mudas que a luz faz florescer. A beleza das coisas é um sol rodando que nos faz aquecer. Isto sei e nisto me perco. Pois é no longe onde me sinto perto. Como um alcançar com a mão o universo todo e tocar um pedaço de luz que irradia para mim, eu, lótus saindo do lodo, rodeado de pântano e águas paradas, nascendo do fim.

Amanhece.

Amanhece e as pessoas acordam estremunhadas, Levantam-se dos leitos e vão trabalhar apressadas. Sustentar-se é uma ocupação e não prestam atenção à razão que as fazem se ocupar. A beleza das coisas está em primeiro lugar. Como este sol que irradia. Crescendo em luz e cor e já é comigo este dia. E a corrente do rio arrasta-me pelo tempo. Que vou sentindo como apenas um lento suceder do momento. Cresce e desenvolve-se em novas cenas ininterruptas. O tempo não existe, é uma invenção para estarmos ocupados, das gentes rudes e das vidas sincronizadas domesticadas pelas máquinas acinzentadas dos fazedores de escravos donos da plantação. A pensar fragmentados que a sua vida não é una mas apenas uma ilusão de liberdade estando pela estranha noção do tempo acorrentados acreditando pelos seus desejos esfumados que pela verdade estão jurados. Acorrentados ao tempo e ao dever de o ocupar subordinados.

Não sei. Quero esquecer…

O destino é uma sucessão de rios a correr. Dando para um mar cuja profundidade parece nunca acabar. E a esperança de lá chegar e ser o tempo e o rio a correr faz-nos alegrar, dá-nos luz no ser. É o que faz a alegria de ver este dia a amanhecer como um sol que lá fora cresce em mim e é já luz a subir numa rosa que floresce. Pelos mares do sentir vou vaga a vaga mentindo-me a sumir. Levado pelo embalar das ondas num mar aberto que me esmaga de tão pequeno ser e querer subir. Ah pudesse saber, o segredo todo do universo e o contar e depois tudo, tudo descrer. As palavras não serviriam para o descrever, se calhar o sentir também não, nunca o irei ver nesta luz do sol a esmorecer. Pensá-lo muito menos. A intuição é apenas uma sensação. Terá de haver algo mais forte. Um sorver do universo na minha consciência. Ir além do universo e de toda a sucessão de palavras e de números da ciência e da supra-ciência. Ser já tudo, imanência. Poder ser já tudo, presença e clarividência. Imagem pura a rodar em fosforescência. O futuro está em mim contudo perdido num sonho de ausência. Agarro o futuro comigo dentro e alcanço o gozo desta manhã na sua luz que resplandece, num ventre que se abre, num ser que volta e que de novo se esquece. Sol e eu somos gémeos num rodar de cores e esta manhã agora e sempre em mim são gozos e dores num rodar que permanece e não parece haver fim nisto que acontece. A ver as pessoas a acordar de um sonho que de súbito empalidece. As suas cores agitando-se como breves flores numa imagem que lentamente se desvanece.

Amanhece.

O que sou virá com as teias que o destino tece.

Emparedado pelo universo que me esquece sendo já libertado das correntes do que me acontece simplesmente pelo ato de respirar e de ver o mundo a libertar-se sucedendo-se devagar neste fogo meu a queimar-se…

Como um sonho a passar que a corrente do rio movimenta…

Creio que soube tudo quando vivia na placenta.

Agora quando acordo, o mundo com os seus medos tenta fazer do conhecimento algo que afugenta.

E vivemos lobos selvagens com medo do fogo.

Cercados por rochas e por ignorância nos montes ermos de não termos compaixão nem esperança nem sermos nem termos infância.

Uivamos uns aos outros e à lua.

E o fogo está já no olhar, mora nesta rua.

Onde tudo subitamente acontece.

Como tudo tem de acontecer.

Amanhece.

E sinto-me perder.

Acho-me no lume a arder da outra alma no olhar.

Que de súbito se encontra a rir e a chorar e encontrando-me sai de si devagar olhando-me assustado para nenhum lado do seu lugar.

E sou irmão.

Lobo que saiu da toca do monte ermo da ilusão.

Olho agora o outro que em sereno encontro me acha como que saindo de uma névoa.

E olhando-me escuta as minhas palavras feitas de mãos que se unem num cumprimento feito do tácito consentimento de que as estrelas são para todos e de que o melhor por amor será feito.

Isto e tudo isto a pensar vai acontecendo.

Neste suave estar onde a contemplar isto vou vendo.

O todo a acontecer enquanto uma brisa desce e está amanhecendo.

Amanhece.

E a perder-me o mundo resplandece.

Talvez comigo ou mesmo sem eu.

Eu é uma palavra que universo desconheceu quando se fez.

Já era eu quando tudo teve início e quando olhei o lago espelhado antes de para aqui descer, o eu era o universo e era todas as coisas que a mim estavam a aparecer.

Como o agora e este amanhecer.

Partindo-se em espelhos reflectindo-se até ao infinito.

Escuto o amanhecer como quem de repente quer dar um grito e ser, o sol o grito e o amanhecer, entrecortado com esta luz e as pessoas a acordar e nunca morrer.

Morro a viver depressa num esquecer demorado e devagar.

O que não sabemos é uma compressa com que estancamos o sangue que corre no rio do tempo a avançar.

Ininterruptamente tempo fora a desenrolar-nos nas águas frias da consciência.

O que somos foi-nos pensado por uma espécie de fogo de tudo, que nos queima por dentro como como sempre o tempo foi, um fogo que a viver nos cria e destrói, nós os amados do imenso.

E viver dói…

Penso isto, amanhece e fico um pouco tenso.

Estou num fio.

Num fio a pensar o fio fino com que nos tece a lógica de tudo ser.

Respiro fundo e esqueço tudo isto enquanto assisto ao amanhecer e desisto…

Mas Ser é algo que persisto.

Conhecer é algo que persisto mas talvez nunca o possa ter.

Ao menos de tentar jamais desisto.

Pelas montanhas e pelos vales de ser a tudo assisto.

Como um comboio avançando pelo amanhecer.

O amanhecer do anoitecer que da montanha ao vale desce.

Amanhece.

Sou isto.

Isto…







...


Texto extraído do livro "Breves Contos Modernos" (Artelogy, 2017) de Marco Oliveira

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