O conto chama-se Lobo.
É uma viagem até ao fim da noite estrelada...
Lobo - 27/1/2008
É uma viagem até ao fim da noite estrelada...
Lobo - 27/1/2008
Viu a noite aproximar-se naquele
crepúsculo púrpura e longínquo alongando-se como um eco.
Pensou nela, na sua figura alva por entre as
sedas da imaginação.
Decidiu ir.
Ela morava numa outra cidade não muito longe
dali.
Para ele tudo era um atuar, improviso.
Desde a forma como vestia à forma como
sentia até à forma como pensava, tudo obedecia a uma lógica simples de
equilíbrio entre opostos irreconciliáveis, ser e não ser, estar e desaparecer.
O seu inconsciente desenhava aquela mulher
como um anjo andando por sobre as águas, leve e doce levada numa brisa fria
suspirando.
Ele sai á rua como uma sombra silenciosa
voando pelo escuro claro da noite névoa.
Ao seu redor uma neblina conspirava suaves
candeeiros acesos em tons amarelos.
Toda a cidade era um pântano espiritual
maldito de onde emergiam suaves murmúrios correndo entre as correntes de ar
frias e murmurantes.
Entrou no seu automóvel escuro.
Por milhares de milhas de esquecimento negro,
levemente iluminado pelas luzes acesas do automóvel, ele via a estrada aparecer
subitamente em traços brancos rápidos.
Risca um fósforo na pequena caixa que, em
estilo noir, apresenta as letras “Sétimo Céu” escritas a cores de fogo.
Acende um cigarro.
Apaga o fósforo.
A necessidade extemporânea de fumar o fumo
azul, que o enche numa suave nuvem, é satisfeita com uma agradável
chicotada de nicotina.
No rádio do automóvel soa um violoncelo
fremindo em cujas cordas deslizam imagens diferentes que parecem reverberar
luminosos futuros, pequenos nadas, vislumbres mínimos do porvir.
Ela estaria lá?
Avança pela estrada tragando quilómetros e
quilómetros e instantes e mais instantes que parecem entrar pelo vidro á sua
frente como pequenos monstros rindo-se delirantes num cenário mental
subliminar.
Ela estaria lá?
E o rádio vibra sons de estremecer as
emoções.
Um violoncelo vai fazendo as cordas e os
nervos dele vibrar.
Lá no alto, no cimo da noite, a lua parece
queimar-se distante entre os véus diáfanos das nuvens silenciosas.
Ele sente no seu estar ansioso uma espécie de
necessidade urgente de ter de ficar com ela pelos anos vindouros.
Sente-se tão feliz por antecipação que parece
querer gritar, queria gritar muito, por sobre os bosques, por toda a sua
imaginação com os bosques dentro, por sobre todo o mundo com ele e os bosques
dentro.
Sensações mornas e vermelhas vão fazendo
crescer nele pequenas lágrimas de êxtase que se amontoam no olhar vítreo.
Quando, ó Deus, quando?
E na sua memória a imagem dela movimenta-se
dentro da noite como se tivesse vida própria.
É como se ela fosse uma aparição de luz
boiando no meio da estrada escura que o automóvel vai tragando iluminando no
asfalto uma incerteza insegura de chegar salvo.
O inconsciente dele é uma orquestra caótica
como quando afinam os instrumentos todos os músicos antes de começar um
concerto numa espécie de atmosfera amniótica.
Furtivo, o seu olhar fino entra no escuro da
noite.
Ele e ela parecem subir de um sonho que se
evola da estrada dançando uma valsa etérea na escuridão.
De olhar fito na estrada ele pensa em tudo,
ele pensa em nada.
No rádio, um violoncelo continua a gemer
pequenos gritos de gozo que se introduzem na noite como faunos selvagens
errando nos bosques perto de fontes claras num jardim puro desvanecendo-se
suave em longínquo futuro.
Metamorfoseando-se na estrada escura, dentro
do automóvel transido no embalo do violoncelo cromático, lentamente ele
transforma-se num lobo, num puro lobo de cinzento pelo, espesso e cru cinzento
pelo.
Tem brilhos e uivos o seu olhar.
As rodas do automóvel são quatro patas que
correm numa procura selvagem entre os montes e os rios frios que junto à
estrada longe parecem desfilar e correr.
Na sua mente de lobo caem cascatas onde ela
se banha nua por entre as pedras silenciosas.
Nua em cascatas de cristal…
Ele atravessa a noite como quem atravessa um
sonho sem som.
O automóvel tem um odor a pelo de lobo.
Os faróis são dois olhos intensos encadeando
primitivos instintos perdidos.
Ele procura-a longe na noite mística entre
violoncelos e uivos, entre os mortos e os feridos que na batalha dos sonhos se
movem, dançam e cambaleiam.
Está pouca gente na estrada.
Outros automóveis com mais lobos dentro têm
planos similares e rondam e uivam em alcateia pela escuridão procurando
prazeres convincentes e casuais nas cidades acesas.
São semelhantes todos, exalam dos seus
pelos cios animais que procuram satisfazer sob a lua cheia que saliva.
Uma placa indicava um nome.
Viu-a de relance.
A cidade agora era diferente, era um breve
rumor de luzes e transe.
Casas como tendas mal iluminadas bordejavam a
estrada emanando um etéreo fogo misterioso, meia-noite e tudo aquilo seria
perigoso.
Toda a arquitetura daquela cidade, vista ao
olhar rápido e lancinante do lobo, era uma vibração pura de algo nunca visto na
velocidade estonteante das quatro patas correndo à velocidade do automóvel
escuro.
Um esquecimento infantil e diletante o levou,
algo de surpresa instantânea por acontecer ali ao seu redor se formou.
Junto a um bar mal iluminado estacionou o seu
veículo.
Sobe as escadas de cimento e tudo isto é
ridículo.
Lá em cima um letreiro a letras de fogo
soletra “Sétimo Céu” num lento néon azul de modorra abstrata afastando-se.
Luzes escondidas reverberam pequenos cantos e
recantos com mesas e cadeiras minimais, sente os gestos insignificantes das
pessoas num claro escuro sem futuro.
Aproxima-se do balcão.
O seu faro distingue distintamente os
personagens sem história e os vencedores com as mulheres perfumadas a seu lado.
Exibem-nas loiras, como troféus de vitória.
Pelo perfume que elas emanam tenta distinguir
nas formas musicais a silhueta dela, a sua vibração característica de vermelho
que grita e sorri de beleza.
E lembra:
… Os lábios delas eram como rosas mordidas...
As mulheres em redor pareciam encenar uma
sensual cena secreta feita de impaciências e rubores que saíam dos seus corpos
frágeis semivestidos.
Ele entrava nos seus olhares expectantes e
procurava dentro delas a lua, a janela que se fecha, as roupas no chão, a
lareira que arde, a cama por onde a pele desliza suave e os uivos.
Nada.
Só mágoas...
Vagos fluidos.
"Obrigado", disse, ... e não sou
obrigado a isto, pensou, o álcool é um torpor que em mim é mortal risco.
Havia ainda uma escada que subia até ao
primeiro andar.
Dela desciam algumas mulheres lentamente,
insinuando-se devagar.
Um tipo qualquer subia pela escada com um
casaco de couro procurando noutra mulher mais fortuna que o ouro.
Ele olha o seu relógio suíço.
Os segundos sucediam-se certos como as fortes
batidas do seu coração, entre o sangue e as veias no seu interior pulsando,
pulsando, olhando desertos no seu olhar de lobo procurando-a ansioso para sua
consolação.
Do seu olhar saem duas estrelas longínquas
que parecem se aproximar enquanto o universo gira e gira e tudo são cores e
cambiantes sempre e sempre a mudar.
Procura-a no meio dos corpos casuais.
Esta gente movimenta-se como sombras silentes
num claro-escuro sem futuro.
Bebe em pequenos goles o whisky sem história.
Sons líquidos de pequenos toques no vidro das
duas pedras de gelo no copo fazem-no ansiar ainda mais fortemente a distinta
vibração dela.
Pudesse ela tirá-lo deste pesadelo.
Nada.
Não era ela.
Mulheres presas.
Saliva um pouco enquanto olha a imagem da lua
devoradora que atravessa os vidros da janela mal iluminada lá em cima no
primeiro andar.
De um trago engole o óleo líquido daquele
whisky marado.
Pousa o copo no balcão, subitamente
determinado.
Sacode freneticamente o seu pelo de lobo
solitário levemente ferido mas subitamente regenerado.
Sobe as escadas.
Lá em cima havia sofás vermelhos e pequenas
mesas minimalistas.
As cores que saíam daquelas luzes eram suaves
desmaios de damas e riscos mentais verdes de muitas gamas.
Haviam azuis esquecidos nas luzes e
verdes fantasmas boiando em copos de absintos simbólicos.
Olhou em redor.
Os seus olhos como duas chamas consumindo-se,
tragando o vapor e o temor.
"Gente sem história...", voltou a
pensar ironizando calado dentro do seu pelo de lobo eriçado.
Encostou-se ao balcão do primeiro andar.
Pediu whisky novamente, "com duas pedras
de gelo por favor", entrando num fervor melancólico de óleo metálico
volátil correndo-lhe no interior.
"Com certeza".
"Obrigado."
E pensou, como tudo é táctil...
Aquela empregada tem um decote ousado, olhou-a
demorado.
Os seus peitos salientes segredam impossíveis
prazeres por realizar.
Ele olha-a e sorve-a visualmente rapidamente
desejando-a como uma incontrolável torrente elétrica zoando, como um relâmpago
azul mental que em si mesmo se ilumina e tudo é tão irreal, estonteante e
superficial, que ela isso mesmo nota e nada, nada, nada acontece.
Nem sinal dela.
Vai bebendo devagar o líquido endemoninhado
enquanto lentamente entra numa espécie de floresta com palavras vivas revoando
em volta escondendo-se nas copas das árvores sob a lua.
Aquele primeiro andar desaparece
silenciosamente numa névoa sem forma.
E sente o odor da terra quente nas suas
narinas.
E sente o odor dela que parece embalar-se
numa brisa noturna acompanhada de canções e clamores rudes de ébrios
amargurados que loucos rondam.
Subitamente, ela entra no seu sonho
silencioso com um vestido vermelho e os ombros nus partindo o espelho do olhar
que isto reluz.
E sorri como um brilho.
A lua mantém-se em chamas lá do outro lado do
vidro naquela janela ao fundo.
As pessoas á sua volta derretem-se como um
caramelo sem forma emanando fumos lentos e sonos de estátuas de corpos dóceis.
Ele olha fixamente aqueles lindos olhos dela
como duas distintas pérolas negras rolando.
Fica encadeado no seu sorriso que rebrilha.
“Olá”, diz ela.
E o seu corpo exala um perfume feito de vivas
labaredas, de espelhos escritos com batom, de ursos de peluche felpudos
deitados na cama e de mornas conversas ao telefone com a água do banho a
correr.
“Como estás Mariana?
Nestes últimos dias tenho pensado em ti…”
E ela sorri com um sorriso igualzinho ao do
sonho, daquele sonho de terça-feira de madrugada onde a noite parecia gemer em
contorções frias, onde os ramos da árvores que se assustam batiam na vidraça
enquanto a noite escura lá fora era o caos e a desgraça e havia uivos e toques
de dedos frios na sua mente sonolenta virando-se de gozo sozinho por entre os
lençóis da cama.
Pensou nela toda a noite entre labaredas…
“Por onde tens andado?”
Ela mexe os lábios soletrando palavras
invisíveis com chocolate doce dentro.
Fala-lhe de cousas que soam a humidade no
espelho durante o duche, a máquinas de lavar que rodam e que rodam noite
dentro, ao miar de um gato branco felpudo passando fofo por entre a roupa em
cima da cama.
Ele sorri.
Sabe-lhe bem aquelas palavras, a um ligeiro
sabor a requinte e a cafés majestosos com violinistas dentro e menus caros dizendo
coisas em estrangeiro nas mesas.
Subitamente ele penetra naquele olhar vivo
dela.
E uma estrada que serpenteia.
E uma praia na noite deserta.
E dois corpos lambuzando-se enrolados e
desprendidos na areia.
E há um grito espasmo de prazer e a lua é
lenda lenta tudo a ver...
Enquanto bebe mais um gole no seu copo de
cristal ela fala-lhe de coisas longas e lentas, uma conversa emocional como
violinos riscando-se inofensivos.
E parece música de embalar as palavras dela,
como algodão doce, mel e nuvens, um verão de dias claros abrindo-se em cenas de
luz por praias.
Pequenas caixas de música tocam num quarto
estranho camuflado entre almofadas vermelhas e sofás preguiçosos.
Ele toma a palavra.
Fala-lhe de coisas como pequenos traços,
poucas cores, um violoncelo riscando-se monótono e um brinde no fim.
Ela sorri e confia nele.
Na sua mente do lobo há milhares de
pianos estendendo-se sem fim numa galeria de espelhos.
Naquele momento, algures, Beethoven toca a
serenata ao luar num século dezanove igual a todos os séculos envolvendo tudo
numa súbita solidão saudosa.
E havia lágrimas invisíveis que caiam frias
vindas algures da abóbada escura da noite que era aquele estar sem a sua mão
quente na sua mão, subitamente corando ela parecia...
Uma linda visão de menina...
Ele sorri e confia.
O tempo passa e ele vê nela um leve rubor na
face.
"Sabes…"
E a conversa ficou mais alegre quando ele a
convida para sair daquele sítio sem forma, daquele casebre de lobos sem alma.
“Este lugar não tem o mínimo de decência para
com a tua beleza, mereces melhor...”
Ela sorri e emana da sua pele um lânguido
gozo de súbito amor quente.
E o seu perfume inebria-o.
Ferve-lhe o sangue de lobo por dentro.
Pequenas fervuras brancas sobem como as
bolhas no copo que ela deixa no balcão.
Os dias anteriores, cheios de cortes e de
dores, pareceram sarar, e aquela cena de sair dali com ela era como um novo
rumorejar, um desejar de coisas possíveis no meio deste deserto do incerto.
Mas agora, um sol interior animava-o.
A lua má fora-se embora com as suas carruagens
de nuvens escuras correndo e assustando alguém que ainda não tivesse em si
mesmo crendo.
Só ele e ela dentro do automóvel, um ao outro
o silêncio lendo.
Foram pela estrada conversando como um desejo
bom que se partilha e aquece, que se estende por milhares e milhares de milhas
em viagem.
Saía dele o odor a pelo de lobo.
Salivava.
A lua cheia lá em cima salivava.
Instintos vermelhos dentro dele anteviam
um prazer profundo.
Os seus olhos eram duas candeias de fogo.
Ultrapassava rapidamente os outros automóveis
com lobos dentro.
Ouvia o rumor da alcateia reunida em novos estabelecimentos
de diversão noturna.
Era um rumor breve e superficial cheio de
pequenos uivos de muitos lobos que brincam e rosnam por entre os néons e as
bebidas brancas.
Deixou a insanidade para trás e a paisagem
tornou-se mais calma e amena.
Entre risos e perfumes e botões na roupa que
se abriram ela pergunta-lhe sorrindo:
“Porque me levas á loucura desta maneira?”
Sob uma lua maliciosamente quente, ouvindo o
respirar do mar que se estende até ao fim da constelada escuridão, os dois
fazem amor conscientemente inconscientes indo-se no calor da pele, no toque
da água fria e das mãos, no deslizar da pele pelas areias ferventes e já não na
platónica imaginação.
E davam as mãos evanescentes.
Sob a lua quente.
Os corpos nus rastejam lentos em suaves
contorções de puro toque e magia silenciosa.
A lua incendeia-se outra vez no doce gozo da
alegria.
O sabor da pele dela era salgado,
molha-lhe os lábios um travo a mar e a maresia.
“Pára, pára por favor, estamos a ir muito
depressa, estamos a ir muito depressa!”
E todo o cenário no seu interior explode
dentro dele.
Os seus dentes caninos sorvem de gozo aquela
pele branca sensível.
E escuta o bater do seu coração de
passarinho.
Os seus olhos brilham como duas almas acesas
num tártaro escuro.
Como num sonho rápido, devorados pelas chamas
que cobriam os corpos, os dois acabam por dormir abraçados e enlaçados em poses
insanas nas areias da praia enlevados por leves olores selvagens indo-se ao
vento silencioso.
A lua azul ilumina um caminho de luz no mar
sonolento.
As suas mentes já não pensam, já
não sentem, tudo se passa como um violino virtuoso que gira, que risca e
se alonga na chama pura do novo sol que agora lento vai nascendo.
A nova manhã ergue-se com pequenas cicatrizes
vermelhas e mordidas na pele.
Viu a aurora aproximar-se naquele raiar
púrpura e longínquo alongando-se como um eco…
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