O conto chama-se "A man in the crowd" e é baseado no conto do mesmo nome de Edgar Allan Poe escrito em 1850.
É um homem que sai para a rua e vai descrevendo o que vê.
Trata-se sem dúvida de um 'flaneur' do século XXI. 

A man in the crowd – 25 de Janeiro de 2018







Abri a porta.

O ar da manhã era frio. A luz, a luz reverberava-me luzidios esquecimentos por entre o céu líquido azul. Quem eu fora já não importava… Caminhei pela rua por entre as pessoas. E as pessoas eram eu também. As pessoas, as pessoas eram miríades de eus que saiam das perceções que ali tive enquanto caminhava só pela calçada. Eram elas. Todas elas. Belas, feias, boas, as pessoas… Indo para o trabalho, indo para algum lado, indo passar o tempo de alguma maneira. E era como se navegassem em canoas deslizando num mar parado de cristal. E lá iam elas. Suaves, a deslizar, as suas almas nuas eram como bandeiras desfraldando-se no vento frio da manhã. As suas roupas, as suas roupas eram os símbolos dos seus corpos ainda mal acordados de serem ainda oito e quinze no relógio da igreja. Oito e quinze no relógio da igreja. Bate o sino indolor. Olhei em volta. Revoam pássaros… E pessoas… As pessoas misturavam-se com os pássaros. Os pássaros revoavam em volta das pessoas. E de súbito, de súbito, vi meus irmãos soltos pela vida fora como peixes lançados em novas águas alvoroçadas… E lá fui, caminhei pela rua como quem peregrina a sua alma crua numa promessa feita de fumo baço por entre palavras indecifráveis. Alcancei solene a praça da cidade e tudo era automóveis, carcaças de carros eram como carapaças de escaravelhos, caminhando com as suas patinhas de borracha rolando no alcatrão, caminhando com as suas patinhas subindo as couves dos quintais, parando nos semáforos pacientes. Olhando o semáforo parado. Os prédios eram enormes em redor, eram feitos de queijo e bolor, eram enormes, do tamanho de torres feitas de vidro e de aço, e no topo das torres haviam antenas e gelados de morango.

Quem me sou aqui ó pai feito de estrelas? – gritei dentro de mim…

E revoam pássaros.
E revoam pessoas a caminho dos seus destinos.
Olhei e olhei e olhei enquanto caminhava já um pouco aquecido por tanto caminhar. O meu corpo era eu por dentro de uma gabardine cinzenta. A minha alma, a minha alma era eu por dentro de um corpo que estava dentro de uma gabardine cinzenta. De súbito… De súbito a minha alma ameaçava ruir…
Vi no alto uma lua clara como uma moeda desgastada no céu cinzento.
Pombas voavam brancas ao redor da praça e caminhavam em passinhos titubeantes junto à estátua do poeta.

Quem eu fora antes não sei…

A manhã era feita de âmbar e eu estava dentro dela. Passo esquivo por uma velha senhora que assa castanhas, e vem-me o odor a castanhas assadas igualzinho quando eu era pequeno a brincar tonto no recreio com o pacote de leite achocolatado na mão. E talvez nessa altura fosse Primavera, não sei…, o ar tinha uma névoa parda, havia uma quietude do tudo em redor, como quando acordamos e temos ainda restos de noite e sonhos no olhar, e olhamos, e olhamos, e estamos ante o espelho e passamos água fria na cara e talvez seja ainda cedo, tão cedo, ali e agora no meio dos azulejos frios azuis da casa de banho dentro da cidade dos caixotes de betão…

Lá longe, no inquieto distante, lembro-me de meu pai, do meu pai de uma outra vida que tive… Segurava uma enxada e cavava a terra enquanto lhe caiam bagos de suor da testa como orvalho grosso caindo na terra húmida. Cheirava a Ossela ali, a antiga aldeia, cheirava a Ossela ali e a romanos antigos e a visigodos que nunca vi, romanos antigos e visigodos que passaram por ali a cavalo para ir a lugar nenhum, talvez fossem para um sitio feito de sonho e de lonjura…. Não sei… O odor das castanhas que passa onde estou é feito de arabescos azuis por entre os fumos finos… Sabe bem estar aqui, junto à velha senhora, enquanto esfrego as mãos de contente para afastar o frio, e estou contente, por hoje ser ontem mais o amanhã agora no meu olhar. Sim, no meu olhar está aquela imagem de meu pai na minha outra vida, distante, cavando a terra, semeando musicais sementes com a mão grossa sob o sol quente da agrura da vida dura, enquanto caem bagos de suor da sua testa enrugada na terra húmida, e há um tapete de fino orvalho na manhã em Ossela. E passam noites e passam dias ao sol. E dali a umas semanas, da terra húmida, brotam pequenos caules. E dali a mais algum tempo, rejuvenescem firmes esteios de milho rijo que abanam lentos na brisa suave, e dali a mais algum tempo rejuvenescem moles seios e flores brancas que se abanam lentas na brisa suave. Sob o mesmo sol frio, duro e distante, o mesmo sol quente da vida dura em Ossela, das enxadas a cavar a terra, das abelhas a zumbir, dos rouxinóis a chilrear, da fome que os corvos ao grasnar dizem estar a se aproximar, das chamas ululantes no Verão quente a subirem, a subirem nos eucaliptos aos gritos, mais as águas do rio manso a correr, lá longe, águas meigas como leite fino, tudo isto tal e qual como era à mais de mil anos, à mais de mil anos, quando os romanos e os visigodos passaram por ali a cavalo indo para lugar nenhum, indo para dentro de um sonho baço feito de névoa, de fé, de puro sol dourado e beijos sob a lua quente.

Aqui, na rua, não se pode dizer que seja mau… Estou escondido de tudo dentro do meu corpo pesado. Sou alma viva como um braseiro no interior escuro que há dento do meu corpo que se acende hoje e agora e aqui e sinto-me uma chama de uma vela ao vento. E ninguém me vê. A velhinha das castanhas oferece-me um pacote com elas quentinhas embrulhadas em papel de jornal. Vou ao bolso e dou-lhe uma nota, depois, vou andando, pé ante pé, por entre o fumo bom igual a quando eu era pequeno e tonto e brincava no recreio com o pacote de leite achocolatado na mão, e fazia FZZZZZZZZT na palhinha e sabia bem o chocolate, e a névoa ao meu redor era igual à do sonho feito de aguarelas, aquele estranho sonho que eu tivera de madrugada, a viajar com a minha mãe, por entre a trovoada e a estrada molhada, numa viagem serpenteante, à procura de um refúgio por entre os novelos de lã e as gotas a chorar da pia depois de lavados os pratos. E não sei… Não sei quem me fui depois. Sei que entrei num poço profundo, que olhei para cima e vi uma catedral. Era feita de pedra e de sonho bruto, estava desenhada acima das nuvens, vi-a bem dentro do fundo do inconsciente azul, e haviam gotas que caiam do fundo inconsciente azul, e escorriam-me lágrimas nos olhos, e quando acordei era eu, só eu e o quarto, pintado por sonhos breves, musicados estavam todos os meus pensamentos que se riscavam como pinceladas quentes deslizando em mel frio, e havia muitos sonhos, muitos sonhos depois, e num deles lambo os beiços depois de a beijar, sonhos dentro, era ela ali agora, no meu outro sonho, ela, linda…, Maria, feita de pele morena e olhos escuros, e o hálito dela era morangos silvestres e bosques húmidos e gostei, e queria mais, mais, beijá-la até à terra do nunca mais, era isso o que eu queria, fugir com ela num barco pelo mar dentro até ao fim do sol, e ver a manhã, na lonjura de olhar olhando o horizonte, olhar por onde escorre uma lágrima, e o mar defronte…
E fui sonhos assim subindo a rua, passo após passo, caminhando, já longe dos fios de fumo baço azuis das castanhas a assar e das rugas engelhadas da velha. Trinco uma castanha quente como quem morde um monte mole aquecido a manhãs de prata na língua, e sabe-me a infância outra vez como um chocolate que se morde e afundamos de gozo eu e ela na languidez de um sofá.

Não sei quem me sou outra vez. Se eu ou o gato maltês que passa rápido bem à minha frente junto aos postes de iluminação. Nesta rua escura da perdição. Não. Não sei quem me sou, repito, não sei quem sou.  Piiiiiiiii, e buzina um automóvel, uma criança corre na passadeira, o sinal vira a verde. Alguns metros ao lado um adolescente curva-se para ver o telemóvel, vai a ver os risquinhos clic nice trick no ecrã fujimori, clica com o dedo e funga do nariz, leva uma pasta às costas e parece ser feliz, está seguro, é pago pelos pais, é feito de século vinte e um no meio dos eons do tempo infinito, está aqui e veio evoluir, por entre o cimento e o barulho insensível dos rodados dos automóveis e dos escaravelhos a passar no pavimento, a passearem as suas patinhas nas couves, e não sei, ainda acredito, ainda acredito que um dia se descobrirão os segredos do éter de onde caímos para aqui estar… No meio deste infinito… E talvez, quem sabe, pensar é nadar num mar sem fim, um mar sem fim feito de esperança, de fé, de caridades. Pelas idades fora fui sendo alguéns, alguéns cujos ossos agora secam, nos cemitérios que os séculos esquecem, junto a carvalhos silenciosos…

Meu Deus como sonho a cores e tanto!!! Tanto…

Caminho pela rua transido nestes pensamentos. Tenho um odor a after shave azul de hipermercado que estava junto à prateleira branca. Estou em promoção. Os meu dedos, os meus dedos dizem segredos dentro das suas células vivas feitos de carne mole. Pelas minhas impressões digitais passam espíritos... E há átomos que falam em mim e nestas pessoas que passam os seus corpos dentro dos automóveis de vidros fumados. Pessoas que passam despercebidas transidas de vida fútil e mimimi. De repente, de repente sinto-me partir aos bocados, parto-me estilhaçado desmembrado que nem Hiram Abiff depois de traído e enterrado e desmembrado num jazigo e que se lixe. Não me encontram aqui os olhares das pessoas indiscretas. Passo pelas ruas inquietas onde vivem velhos ascetas dentro de quartos feitos de bolor e televisão. As suas barbas grandes são grisalhos dias feitos de sempre a mesma coisa, é sempre a mesma coisa, dizem com poucos dentes. E saio destas ruas feitas de dias de calendário, de revoluções e de marchas militares, e vou até ao metro, ver o spleen do século vinte e um ao contrário. Deviam colocar neons no metro. Deviam colocar neons no metro e cabarets com mulheres dançando nuas num varal vestidas de vermelho pelas luzes. E daríamos umas moedas aos artistas vagos e aos junkies casuais e seguiríamos as nossas vidas. E as nossas vidas existiriam mais intensamente quando marcadas indelevelmente nos intervalos dos ponteiros do relógio, em sítios esconsos, em sítios esconsos onde trabalharíamos zelosos pelo pão e pela subsistência como lobos em alcateias. Uivando muito…

Tenho filhos por criar, parece dizer aquela jovem loira de lolipop na mão. Daqui a alguns anos terá sim, e terá de trabalhar para os sustentar, para sustentar o berreiro que os filhos fazem na sala e no recreio, ela, com as crianças ao colo, com a sensação de dever cumprido quando eles dormem e é duas da manhã no quarto silencioso e cheira a óleo Johnson, fica a pensar em na cor do pano de cozinha, como é parecido com um que a mãe tinha...

Tenho minha campa por abrir, parece dizer o velho de olhar baço segurando um jornal feito ainda de papel. O velho com cara de morango olha atentamente para os anúncios das loiras dos classificados do relax, e à noite sonha vermelhas visões olhando para as apresentadoras na televisão sentindo-se com quarenta graus no corpo. E fica censurado pela Natureza e pelo superego freudiano que mora dentro de si, de boca aberta, a cismar, quando de súbito se lembra que a sua mulher morreu há treze anos. A minha mulher morreu à treze anos… Treze anos… Meu Deus, tanto tempo… E a televisão vende cálcio aos pacotes para apressar a morte dos outros velhotes.

E continuo caminhando pela rua como quem passa esguio pelas portas entreabertas de meus sonhos dentro. E vi, sim eu vi, as pombas outra vez junto à estátua do poeta, mexendo a cabeça para trás e para a frente, caminhando as suas patinhas para trás e para a frente, bicando manhãs de esquecimento e milhinho, enquanto naquele exato momento, algures, naquele exato momento, se dão esmolas e se abrem contas na Suiça, enquanto os automóveis passam como harpas ululando surdas ao vento, soltando melodias de esquecimento e são dez da manhã e há ainda muito gasóleo para queimar, o homem duro de tatuagem no braço carrega no pedal e sai fumo do escape, avança o camião rugindo pelas ruas com três moveis brancos de cozinha por entregar, o camião é feito para durar, e no rádio do camião passam músicas de embalar piratas, fados e coisas absurdas como anúncios de espetáculos de cantores do oblívio que depois passam, que depois passam de moda como páginas de jornais a esvoaçarem desgarrando-se os papéis nos postigos da passagem do metro junto às calçadas brancas de Lisboa, onde os sem abrigo deitados ao frio engolem a própria saliva porque têm sede, e os tuc tuc passam com americanos sorridentes, yes man fine morning, e sorriem como sportsmans, os dentes brancos dentífrico, os olhos Califórnia far away, o casual look de óculos escuros, os nervos azuis e a camisa branca de estar em Lisbon, hey man lets eat sardines!, e lá vão, silenciosos, por entre os fumos das castanhas assadas no Porto ululando sob o olhar atento e parado da velha de grandes rugas, a velha de grandes rugas que vende castanhas, ela lê o horóscopo no telemóvel enquanto bebe água mineral de uma garrafa de plástico, a velha de grandes rugas que passa a mão engelhada na cabeça no neto, Chico, o russo, de olhos azuis, a fungar ranho para o lenço de papel, vai-te embora rapaz!, e ele corre gordo, e tudo se esfuma por entre o fumo das castanhas numa tarde igual à outra vida que vivi, quando olhava os campos verdes sem fim, e a via, oh e a via, Maria, morena a sorrir para mim, enquanto são três da tarde cá e já não sei, de facto não sei, se um dia vivi ou se um dia viverei, sob o mesmo sol que me acompanha durante os milénios em que tenho consciência, sob este mesmo sol que me acompanha durante os milénios em que tenho consciência…

Meu Deus, quem serei?
Entrei em casa.

Fechei a porta.




Comentários

Mensagens populares deste blogue