Este texto chama-se "O pastor, guerreiro íntimo do amor". É a história interior de um pastor, de um pastor do ser, junto a uma fogueira sozinho à noite...
O pastor, guerreiro íntimo do amor
Noite. Sublime. Densidade que se esbate na liquidez de um
pensar. Esta noite, comigo a passar, é como um lento comboio que me leva pela
vida embalando-me neste estar. A viagem dura o tempo em que me apercebo dela,
um nada que se atravessa por entre paisagens de imagens, objetos na nossa
frente que mais não são do que objetos na nossa frente, mudos e quedos,
silentes como estátuas na noite de pedra, olhando-nos à espera de uma ideia que
os molde.
Quem me molda a mim, ó noite do perpétuo silêncio?
No alto da minha montanha, onde sentado medito, deixo passar
todos os sonhos aflitos desta noite, como danados correm e gritam em algazarras
e farras desmedidas, são espíritos esfomeados que circulam este lugar, deixo-os
rondar, como morcegos cegos na sua própria noite, sugam segredos entre
balbucios e brincadeiras de gente travessa, rondam este lugar enquanto a minha
fogueira arde e a noite se atravessa.
O fogo parece estalar algo que a noite parece silenciar,
salamandras de mistério, flautas ao longe no longe da minha perceção.
Não.
Os sonhos são feitos de doce algodão, de caleidoscópios
mirabolantes que giram no delírio de já não haver chão. Deixo-os ir. Deixo-os
ir todos ardendo nesta fogueira que ilumina a minha solidão.
Só com o universo todo servindo como abóboda. Nesta noite de
assombro, sublime, que me calhou enquanto gira a grande roda.
Quem me sou senão uma entrada para o universo inteiro?
Quem me sou senão uma saída para algo que fui primeiro?
Inspiro e expiro e tudo é passageiro.
O tempo é apenas ausência, algo do qual nem tenho
consciência, Natureza a passar sublime como a noite encantada neste suave estar
de filme que calado no silêncio fico a observar.
A fogueira estala, estala a subir devagar, lâminas de fogo
exala e há salamandras a gritar.
Este é o tempo em que pioneiro atrasado sou.
A palavra sou não me contém, é apenas um sopro do vento, algo
como apenas ser filho de uma mãe, uma noção que não condiz com o voo do meu
pensamento. Doravante existo apenas e somente como ninguém.
As estrelas brilham lá em cima num segredar. Ecoam brilhos
das esferas, cânticos negros tornados claros nas vozes das musas ocultas soltas
reclusas que dançam nas minhas esperas. Que noite esta, tão branda e sublime,
parece que é desta que desenrolaram todo o filme, todo o filme de todas as
coisas, levado pelo vento, desenrolado pelo pensamento, toda uma eternidade a
passar-se neste preciso momento.
Estou calmo como o firmamento, lácteo como o luar, algo em
mim se desprendeu deste mundo, algo em mim aprendeu a voar.
Vejo o fundo do mundo na fogueira à minha beira a estalar.
Vai subindo, vejam como sobe aumentando a chama deste lugar.
Labaredas vivas crescem, levantam-se a chiar, são talvez um ponto de passagem
onde olhando-as posso chegar a outro lugar, bem longe, bem longe deste estar,
entre mim e a sublime noite, entre o tempo e o que me apercebo dele, miragem
que se esfuma no meu lume em meus olhos a rarear, viagem que faço até ao cume,
ao cimo de tudo o que nunca irei alcançar.
Ó vastidão, imensidão oculta do que nunca irei ver!
Pelo templo de Salomão entrarei até a noção de todo este
chão perder. E lá ficarei, numa mansão de riquezas abundantes, jamais
suspirando pelo que nunca fui antes, entre deuses e deusas e jardins
luxuriantes, correndo sem fim por verdes campos de mim em sucessivas cenas
abrindo-se fascinantes, por verdes campos, por verdes prados que são brados e
brilhos de mil antigos diamantes.
Ó a dor, a dor de aqui ainda estar! De ter de assistir neste
palco as sucessivas cenas por desenrolar.
Que mais terei de fazer para as ovelhas apaziguar?
Em campos de caos na paz verde parecem balir enquanto o
universo as escuta vendo-as cair uma após uma no frémito da insana luta.
E lobos rondam, salivando por sangue fresco, ocupam o espaço
matando e caçando até caírem de cansaço.
Ó montes e vales de sonho que saem dos montes e vales deste
sítio medonho, que a vossa paz feita do silêncio que aqui jaz serene todo o
insano crer de todo o frémito de viver que tanto o lobo e o cordeiro geme sem
nunca nada saber.
E nesta fogueira a estalar, por breves momentos, senti o
mundo a desabar.
Parecia tudo cair como que a deslizar num imenso líquido a
correr, a ir para dentro de um poço profundo a crescer, era eu e este mundo
girando num sonho fundo, e tudo parecia desvanecer.
Ardia nas chamas todo este meu acontecer, como um passado
que se deixa, deixei-o nas labaredas a desaparecer sem a mínima queixa.
E o fogo a estalar era todo o agora alongando-se num futuro
de uma luz que se desflora, branda e líquida e íntima, como uma saudade do
vento que longe de mim em mim chora.
Pelo templo de Salomão fora entrando bem dentro, bem dentro
da hora.
O amor é fogo na água, vento que perpassa a terra da aurora...
Meu Deus, Meu Deus...
Quem me sou este agora?
O amor é fogo na água, vento que perpassa a terra da aurora...
Meu Deus, Meu Deus...
Quem me sou este agora?
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