Esta história chama-se "Índio". É a história de um sonho.


Índio – 22/9/2016

A noite começa e tudo se acalma no escuro claro da consciência.

A cidade dorme, de olhos fechados nas fachadas, nas estradas molhadas, no nevoeiro leve que sobe das calçadas pisadas.

Assisto a tudo isto do canto da minha alma, tomando um chá e brindando ao infinito.

Desliguei a televisão inútil.

Desliguei o trabalho de caça níqueis.

Sou agora imperador do tempo todo, da noite toda. 

Deito-me e fecho os olhos.

Sinto a roda a girar e subo aos sonhos do que sinto pelos caminhos da minha mente percorrendo um interno labirinto. 


Fecho os olhos e estou longe, a mil milhas daqui, numa floresta densa com troncos de árvores erguidos como braços.

Caminho como um guerreiro só, descalço, sobre as pedras e as ervas dispersas.

Pertenço a uma tribo de caras desconexas que se reúne à noite para dançar em transe a festa da lua enquanto a fogueira arde. 



Ouvimos as histórias do velho pajé que jura a pés juntos que já fora muitos.

E regresso à minha cabana.

Ela dorme na cama, e é lenta a sua respiração. 


Sonha húmidos desejos que se esfumam em imagens baças com gente e gritos dentro.

Deito-me com ela e fico feliz, olhando além da janela a lua magra e o relento lento.

Algumas velas na mesa, as chamas acesas e silenciosas, trémulas de meia-noite fugindo repentinas do esvoaçar de sombras invisíveis.  


Há gente aqui...



Deixo os minutos passarem como instantes que apenas deixo ser, despercebidos e sem pensamentos junto.

As velas ardem.

Ela dorme silenciosa, húmida e doce como a tepidez do lençol entre a macieza da sua pele. Passo a minha mão na sua perna.

Sinto-me feliz.

A lua dorme quieta e morna. 


Enche as águas devagar e a brilhar sente-se a emanar prata reluzente.

Penso por vezes que fui lobo, algures lobo, correndo pela floresta permanentemente, pelas pedras e pelas ervas, em noites como esta, por selvas, eras e quimeras a mil milhas daqui…

A mil milhas daqui, bem agora na minha consciência, enquanto bebo chá e brindo ao infinito e aqui vou estando, neste sempre.

Levitando no doce céu azul... 

Desliguei a televisão inútil.

Desliguei o trabalho de caça níqueis.

Sou agora imperador do tempo todo, da noite toda que se abre a mim enquanto fecho os olhos e vou subindo, pelos sonhos do que sinto, pelos caminhos da minha mente em que me minto percorrendo um interno e longo labirinto. 



E sou agora um outro, o que voa de noite e salva pessoas.

Subo a prédios e olho as ruas em redor iluminadas a vago século vinte e um.

Do alto do prédio onde estou sou do tamanho daquilo que vejo…

E espero só, vivo dentro do momento, silencioso junto ao frio da noite sentindo a mudança do vento.

Olho o tempo que faz depois de dormir, enquanto os corpos dormem jazendo em camas pré-fabricadas sem nada sentir. 

As cabeças nas almofadas levadas pelos grãos de areia de sonhos nada soprados por redemoinhos e tempestades do sem tempo a fugir.

Os seus sonhos são feitos de pedra e de betão, de passos e de desejos dando em nada na fumarada do mundo vão.

E vejo no meu olhar a abrir… Tantas pessoas agarradas ao chão, sem amor nem amar, a vegetar no sem se dar, pelos seus erros constantemente a carpir…

Do alto do prédio vigio e espero o vento mudar. 




Olho a lua magra no céu emanando um reluzir de prata lembrando a recordação de que sempre aqui estive.
A durar no tempo sem tempo deste estar.

E esta imagem lenta e vagamente a desfocar… 


Sou este agora, digo na ausência da hora, o que salva pessoas…

E o vento muda de repente e soa-lhe que alguns quilómetros dali está gente.

Num murmurar iridescente... 

Há gente que vai num automóvel, fumando e bebendo, a música do rádio demasiado alta, grita-se e canta-se lá no interior da viatura, álcool e drogas, a estrada atravessando-se no olhar cansado do condutor, ele é jovem, uns vinte anos mal dormidos, sorri e canta e é demasiado sensível nos ouvidos, ele olha a namorada que vai do seu lado e bebe da garrafa de Vodka mais um trago alucinado… 

Os olhos cansados, quase a fechar.

De repente, sem avisar, uma luz forte de um camião gigante atravessa-se em frente, e o camião buzina como um navio partindo do cais. Há um choque violento…

As pessoas despedem-se no cais acenando. 


O automóvel fica desfeito e os dois jovens no interior estão dormindo de pele demasiado branca.

Do alto do prédio ele voa e atravessa a noite e a floresta e a estrada e tudo passa como linhas brancas tracejantes.

Chega perto da viatura desfeita.

O homem do camião fala ao telemóvel chorando e gritando pela ambulância, rápido, rápido… A sua voz rouca e espessa como quem nunca dormiu e vive entre as urzes da vida.

O homem que salva pessoas entra na viatura, atravessa-a e fala com o jovem transido que saiu do corpo inanimado de pele demasiado branca.

Como estás? Sabes onde estás agora? 

E o jovem alcoolizado está tonto, é todo alma apenas, girando na confusão de querer apenas cumprir penas, olha estupefacto para o seu próprio corpo inanimado na viatura…

E arrepiado, foge como um gato assustado.

Foge e corre como alma desvairada e corre e corre pelo cinzento alcatrão da estrada, sob a noite dos penedos e a lua magra, uivando de dor por não saber mais nada, por não saber que não há morte, por não saber que é apenas o seu corpo físico na estrada… 


A sua namorada acorda do seu sono de alma jovem e olha para o seu próprio corpo inanimado com o olhar espantado.

Mas onde estou?

Exclama com voz doce e o olhar aguçado de surpresa.

O homem que salva pessoas é transparente como ela, aproxima-se lento como uma luz e de voz confiante vai-lhe explicando que a fase no mundo denso tem um fim mas que no fundo não existe fim para a consciência que está sempre evolucionando.

E pega-lhe na mão transparente e pede-lhe paciência, agora ela está num mundo novo, o mundo daqueles que partiram, paciência, muitos para aqui subiram…

Ela olha o homem que salva pessoas e sente um vento quente na cara.

As árvores na escuridão abanam lentas… 


O homem denso do camião está inconsolável, de telemóvel inútil na mão a desejar o fim do sofrimento, porque é que tudo é pagável quando não se paga o lamento?

É naquele instante que a ambulância aparece.

E os corpos inanimados são levados como algo que se esquece.

Começa a chover…

 O homem que salva pessoas não sabe do paradeiro do jovem alcoolizado.

O jovem fugiu pela estrada, transparente, correndo como uma sombra silente pelo alcatrão cinzento, sob o rugido dos penedos e o tinir da prata da lua magra reluzente, evanescendo ao longe ecoa uma palidez de pátria ausente e dormente.

O jovem foge como quem foge de si permanentemente.

A noite o acompanha por entre os ciprestes, por entre os risos dos espíritos dos elementos esfomeados e os braços dos ramos silvestres numa ausência de momentos estilhaçados…

E o tempo passa arrastando lento mil desejos.

Parou de chover. 





Algumas horas depois o sol nasce, irrompem os raios de luz das montanhas. Iluminam-se os penedos e os lajedos na distância.

O esquecimento cobriu toda a madrugada.



O homem que salva pessoas regressou ao alto do prédio.

O vento é ameno agora.

A jovem namorada  do automóvel desfeito lá ficara deitada numa caixa de cristal, com a sua alma penada albergada num pequeno templo.

Um templo feito de luz e de amor, com gente boa desencarnada a tratar dela, olhando-a levemente da janela.
E há danças, véus e jardins suspensos num vago sonho quente…

E de repente,

Tudo se esfumou num sonho de olhos abertos ausente. 

E sou agora o mesmo, no mesmo lugar onde ontem estive. 





Acordado na cama onde o relógio electrónico ainda vigora.




Vejo-o na mesa de cabeceira impondo o ritmo às formigas caça níqueis que andam lá fora.

Nas ruas, nas cidades, por todo o lado em bandos procurando o alimento para o corpo que, escravo cardíaco de estrelas e da morte adiado, sobrevive dia-a-dia sem uma luz de amor de graça dado que lhe dê um sentido, uma alegria.

E penso se um dia será possível dizer a toda a gente que os sonhos que temos de madrugada são 
frescas memórias da morada onde de facto se vive alegremente.
Num sitio onde fomos todos irmandade vivendo em amor na luz permanente...

O dia começa e tudo se acalma no escuro claro da consciência. 


A cidade lentamente acorda, de olhos estremunhados nas fachadas, nas estradas molhadas, no nevoeiro leve que sobe das calçadas das madrugadas. 



Ele levanta-se de cama e vai lutar.

Seis e meia, é altura de ir trabalhar…


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