Floresta. Texto que consta do livro "Breves Contos Modernos" (Artelogy, 2017).
É a história de um místico que, ao caminhar à noite por uma floresta, vindo de um encontro furtivo, encontra vestígios luminosos de Deus.
É na Natureza que o ser humano entra em melhor em contacto com algo prodigioso.
O que se esconde nos Édens por aí?
Floresta 18/1/2017
Na floresta, uma noite destas,
entre a inquietude e o luar, andando sobre as folhas molhadas, a procurar Deus no
fim sem fim da noite com estrelas em mim, lá fora ou o que seja, sentindo o
frio da noite no sentir quente de minha alma que tudo deseja.
Fui...
Um rio a correr bem perto, ouço o
seu rumorejar no meu coração de audição desperto, bem perto, tão perto que já o
sinto a correr na minha ânsia de sentir a corrente fria das águas que em mim
parece sumir.
E antes de o ver, esse rio bem
perto, sei pelo seu correr que dele já estou coberto.
As suas águas frias em sucessivas
correntes correndo nas minhas órbitas vazias, na minha pele já estou a sentir e
parece que a viver estou morrendo.
E a todo o momento, para todo o
lado em que dirijo o pensamento, já sou aquele momento, o doce áureo momento,
em que sou floresta, noite e inquietude ao luar, andando sobre as folhas
molhadas, pé ante pé devagar, à procura de Deus no meu olhar, eu o não eu em
que me sinto estar, aqui no tempo e sempre fora de lugar, sentindo o alegre
lamento de uma brisa fria por mim passeando, a exaltação vazia de estar só
nesta floresta inquieta em que me estou pensando, só nesta floresta inquieta, andando
pé ante pé sobre as folhas molhadas e descobrindo nisso uma mensagem secreta,
de Deus, da noite, do luar, em minha alma de pobre asceta, saboreando o exato
momento de aqui estar.
Pássaros noturnos embalam-me em
seus pios segredos soturnos.
Grilos ressoam sigilos vibrando
quentes na noite.
O que sou meu Deus senão alma a
correr procurando soletrar o Absoluto?
O rio a correr bem perto murmura
decerto que cada dia tem a sua semente e o seu fruto.
No correr das suas águas ondinas
falam palavras vibrantes de espelhos e de luz.
Para onde alcançar Deus nestas
ténues mensagens que por todo o lado a Natureza traduz?
E sinto como um franciscano louco
que o rio a correr bem perto está em mim enchendo-me de água fria a correr sem
fim, e é sempre pouco…
Quero mais, sorver desta floresta
todos os seus segredos ancestrais, nesta inquietude de sob o luar estar,
andando sobre as folhas molhadas sentindo o entusiasmo desta noite por todos os
lados a exaltar, pé ante pé, nos passos perdidos que dou despertando cada vez
mais os sentidos para o que irei ser e sempre sou, amante louco de Deus que
aqui nesta floresta ao relento como um vento me deixou.
Escuto como quem vê, o pio dos
pássaros noturnos em mim já são penas quentes remexendo-se, o saltitar entre os
ramos, e o luar de prata em tudo envolvendo-se e o correr das águas do rio são como
o passar dos anos.
Sei que há um fio ténue feito de
pensamento e do seu fluir, que como uma teia de aranha molhada pela orvalhada me
leva a Deus sempre a subir, e regresso de vez ao gozo da luz subindo em Jesus e
tudo é fruir.
Sente-se como se vive, a razão de
tudo já nos está a existir.
Para que ficar?
Para que fugir?
Toda esta floresta que no
pensamento me resta é já Deus que me está a sentir.
E dou passos após passos nas
folhas molhadas.
E o rio a correr bem perto nunca
morre, em mim corre sob o luar, os noturnos pássaros a piar remexem folhas
escuras que se agitam devagar, nas árvores silenciosas que segredam frases
auspiciosas de encantar, e tudo parece ter vida, já não há saída para este
carnal viver, tudo já é e está agora e sempre a acontecer, na maravilha de procurar Deus
enquanto lúcidos nos deixamos enlouquecer, e remexem os verdes ramos no leve
vento a me ser, o luar é infinitos anos que se esvaem nas águas do rio do rio
bem perto a correr.
Meu Deus o que me está a
acontecer?
Tudo se intercessiona numa
impressionante cena sucessiva em mim a decorrer.
As palavras em que me concebo não
existem para me descrever.
Sou o som desta floresta nesta
última noite que me resta para começar de novo e nascer.
Sob o luar de sonho em que me
embrenho, sou luz no vazio e esta floresta é apenas um risco de um desenho.
Livre entro na inconsciência
pisando as folhas molhadas, como quem pisa eras e eternidades ouvindo correr as
águas e as estrelas paradas.
A noite é-me só no entusiasmo de
procurar Deus.
Um risco de estrela sopra no céu
um fio de luz no escuro.
E sei naquele momento que nesta
floresta à noite ao relento sou apenas vento, soprando livre no entusiasmo do
futuro.
E lá virá o dia, o sol que se
libertou das sombras quando amanhecer.
E brilhará agora já com a lua e
as árvores neste meu silêncio sempre a nascer.
Pisando folhas molhadas ouvindo
bem perto o rio a correr.
Por todo o lado, em mim que sou
fragmentado, tudo está a acontecer.
A luz do luar nesta noite neste
meu ser que é rio bem perto a correr.
Meu Deus estou desperto o sol é a
luz em que me sou sempre a viver…
E o rio a correr bem perto e lá
vai por mim nesta noite a correr decerto, morrendo sem fim na correnteza de mim
na nascente de um imenso deserto.
Há uma luz no fim que nos diz que
estamos perto…
Chove nesta noite ao luar, o
resto não sei e nunca saberei ao certo…
in Breves Contos Modernos - Marco Oliveira (Artelogy, 2017)
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