Artigo sobre Filosofia das Religiões Raphael Lux
O Renascimento nas Escrituras Sagradas
I
Génesis e
Eclesiastes
A Bíblia fala-nos constantemente da eternidade do
espírito e do seu renascimento desde
o primeiro livro — o Génesis — ao último — o Apocalipse. E lembra-nos, ao mesmo
tempo e de forma nítida, que há uma clara separação entre o que pertence ao
domínio terreno e ao celeste.
Além disso, também nos recorda amiúde que a forma terrena
do homem é feita do pó e que, fatalmente, voltará ao pó de que é feito: és pó, e em pó te tornarás[1].
E é, por isso mesmo, por havermos tomado um corpo terreno, que ficamos sujeitos
às leis terrenas. Tal não impede, mas antes nos obriga, a procurar novamente a nossa
elevação ao Divino de que nos afastámos por necessidade evolutiva, ainda que essa
busca se faça pela via crucis do
esforço, da luta, do trabalho e do sofrimento. Como diz o Génesis, no suor do teu rosto comerás o teu pão, até
que te tornes à terra, porque dela foste tomado[2].
Neste versículo, o autor refere-se apenas ao homem
físico, ao corpo feito de terra, e não à essência que o anima, que dá vida e
inteligência à forma terrena que ele tem.
Recorde-se que, logo no início, foi dito: E disse Deus: façamos o homem à nossa
imagem, conforme à nossa semelhança[3].
O que significa isto, senão que Deus, sendo eterno, criou o homem eterno também?
E criou
Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou[4].
Ora, sendo Deus o Supremo Criador e criando em suprema
perfeição, ele comunicou ao homem o poder de criar também; e assim como Deus
não morre, nem possui forma física, também o ego ou espírito humano,
que não é feito do pó da terra mas que apenas “veste” um corpo terreno para com
ele criar outros corpos, tem de lutar, sofrer, criar meios e acumular energias
que o possam elevar a mais altas condições, superiores às terrenas.
E formou o
Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida:
e o homem foi feito alma vivente[5].
Isto quer dizer que Deus fez a forma física e,
depois, insuflou-lhe o sopro vital, isto é, o espírito, para que expressasse vida e inteligência. O verdadeiro homem não é
constituído por carne e ossos, mas pelo eu,
isto é, o espírito ou ego, e este é de natureza divina, eterna.
E, por esse motivo, não morre. O que morre é a forma física, o corpo. Na
verdade, nem se pode dizer que este corpo físico morra verdadeiramente: ele apenas
se desagrega ou transforma. O que vemos no próprio fenómeno da decomposição da
forma física é o palpitar da vida, o que nos mostra como a morte nada mais pode
ser do que a transformação do modo como a vida se manifesta.
De facto, quando o espírito abandona a sua forma
física, logo esta começa a decompor-se. Uma parte passa ao estado gasoso,
escapando-se da terra para o espaço, onde se dissolve no ar; a outra desagrega-se
e fica disponível para novamente ser utilizada por outros organismos, das
plantas, dos animais, e nos próprios dos seres humanos. Na realidade, vivemos
num verdadeiro oceano de vida! É por esta razão que os cadáveres não devem ser colocados
em jazigos ou urnas de chumbo, nem mumificados, mas simplesmente depositados na
terra ou, então, passados três dias e meio sobre a morte natural, cremados.
*
Desde que o homem se entregou aos vícios, guiado por
animalescos instintos, a vida tornou-se mais severa e dura. E por este motivo caiu
na mais profunda materialidade, de que pretende libertar-se agora. E só agora o
pode conseguir por ser esta a altura em que já começa a tomar consciência do que
foi e do que tem de vir a ser.
Deus, o Supremo Arquitecto do Universo, não criou o
homem para a imperfeição, mas para a perfeição. E, por mais que ele se afaste
do recto caminho, ele terá de voltar, tarde ou cedo, à via da perfeição. É
certo que “ninguém se levanta sem primeiramente haver caído”, o que significa haver,
regra geral, necessidade de descer primeiro às condições terrenas, mais vis,
para depois, através do cadinho do sofrimento, voltar a subir conscientemente ao
plano Divino. E assim, morrendo e renascendo, é que nós buscamos perfeição e a
encontraremos.
*
Vem de muito longe a luta contra a vaidade e o
orgulho que dominam os seres humanos e que tanto os inferioriza! Para dar
combate a esta grave enfermidade psíquica foi escrito um dos mais fascinantes, breves
e enigmáticos livros da Bíblia — o Eclesiastes.
Neste livro comparam-se os corpos dos seres humanos
ao dos animais na efémera duração de uma vida. Ali se recorda que a sorte de
uns é a mesma que a dos outros: como morre um, assim morre o outro. E considera-se,
uns e outros, autênticas “vaidades”, isto é, coisas “vazias” da importância que
se lhes dá quando se considera a vida física como um fim em si mesmo. Desta
maneira simples se ensina a conveniência de os humanos se diferençarem dos
animais pela nobreza de actos e pensamentos e em todas as suas relações de convívio,
com os outros e com a própria Natureza.
Mas também se lembra que ambos possuem um “fôlego”,
ou espírito. O do homem “sobe para cima”, eleva-se para níveis de consciência
mais elevados; o do animal, em diferente estádio evolutivo e apesar da sua
evolução, permanecerá num plano inferior ao humano.
Na verdade, as formas corporais, tanto dos seres
humanos como a dos animais, faltando-lhes o “fôlego” ficando vazios da essência
divina — da vida – tornam-se inertes, ficam reduzidos a simples matéria em
decomposição. E ambas, a do homem e a do animal, vão para um lugar idêntico onde
ocorre a decomposição. Todos os seus elementos se desagregam e dispersam para
novamente serem captados por outros corpos, que os incorporam em si mesmos.
Isto mostra-nos que, na eternidade da vida, o fim terreno dos corpos do homem e
do animal, “ambos feitos de pó, é o regresso ao pó”.
E, Quem pode
garantir que o “fôlego”, ou espírito dos homens, ao morrer a sua forma física, se
“eleva” no espaço, e o “fôlego” ou espírito dos animais, desce para debaixo da
terra[6]?
O sábio Pregador, que se dirige a um público secularizado,
com uma visão limitada pelos horizontes deste mundo, faz agora uma reflexão
sobre o destino do ser humano. Interroga-o sobre o modo como pode julgar
assegurada a imortalidade sem dar à vida um sentido que o diferencie dos
animais e assegure esse progresso sem estar sujeito, como as outras espécies
vivas, a leis determinadas e subsistentes que regem o universo.
Vemos claramente neste versículo uma clara
destrinça entre o destino do corpo e o destino do espírito, e muito bem feita porque
nunca põe em causa a importância de um e outro. O que pertence à terra, volta à
terra; o que pertence ao divino, regressa ao divino; o que já atingiu um alto grau
evolutivo “eleva-se” ainda mais. O que não se graduou na escala evolutiva até
ao grau humano, evoluciona mais lentamente ainda que permaneça num plano
inferior ao humano. E ambos, num ou noutro estado. aguardam uma nova
oportunidade para voltar à vida terrena, à forma física, feita do pó da terra.
O sábio Pregador continua depois na sua crítica à
ilusão, à vaidade e ao orgulho que tanto ensoberbece e torna insensíveis e fúteis
os seres humanos dizendo-lhes que não há
coisa melhor, do que alegrar-se o homem nas suas obras, visto que essa alegria
é a sua porção (Ecl, 2, 24), isto é, a sua legítima recompensa das
boas obras, que se torna o seu tesouro eterno, o único que pode ser adquirido nesta
vida terrena e mantido depois dela.
Com estas palavras aconselha ao homem a prudência num
estilo simples. Ao dizer: quem o fará
voltar para ver o que será depois dele?(Ecl. 3, 22) pergunta se não pensa na inevitabilidade de voltar
a renascer para ver e colher o resultado dos actos praticados antes de finada a
sua anterior forma física, o seu corpo de carne e ossos, que nada mais é do que
pó.
Certas correntes de pensamento religioso pretendem filiar
no Eclesiastes a sua crença no aniquilamento total do ser humano quando morre.
E por essa errada interpretação afirmam: quem vai desta vida não volta mais, só
se vive uma vez ou, não há amanhã! E até vestem de preto quando fazem o luto pela
morte de parentes. O negro é a negação da cor e também serve para negar a vida.
Mas, pelo exame que fizemos, vimos nos enigmáticos passos do Eclesiastes que
não é assim. O que ali se faz claramente é a destrinça entre o que é divino e
se chama “fôlego”, e o que é terreno e se chama corpo, do homem ou do animal, e
este com um destino comum: desce para debaixo da terra.
*
Se a morte fosse a destruição total e irrepetível destas
maravilhas que são os nossos corpos, sem a possibilidade de serem oportunamente
melhorados, como encararíamos a obra divina do Supremo Criador? Não seria ela
uma futilidade? Ou até um trabalho inteiramente inglório saído das próprias
mãos do Glorioso? Se olhatmos à nossa volta, fica-nos alguma dúvida a respeito
da Perfeição da obra do Divino Criador?
O Supremo Arquitecto do Universo não cria
futilidades nem imperfeições! O homem, sim! Deus cria na mais pura beleza e
Perfeição, e toda a sua obra se destina à maior glória — a da eternidade.
O homem cria imperfeitamente e a sua obra é incompleta,
como ele mesmo. Mas através dos renascimentos ele vai alcançando, gradualmente,
a perfeição. Como vamos ter oportunidade de verificar, há muitas alusões nos
textos sagrados à maravilhosa lei do renascimento. Graças a ela, vamos aperfeiçoando,
de vida em vida, a nossa forma física, melhorando este complicado e
delicadíssimo corpo que nos textos sagrados se chama “o homem feito do pó da
terra” e, ao mesmo tempo, nos graduamos espiritualmente para mais altas
condições à medida que nos libertamos das leis terrenas.
Todos quantos deixam a vida terrena voltam novamente
a ela! E só assim é que nós podemos encontrar plena justificação para as
profundas diferenças da “sorte” que notamos de uns para os outros. Nasce-se
cego, aleijado, rico, pobre, inteligente, imbecil; algoz ou vítima; feliz ou
infeliz; para mandar ou para ser mandado; para subir às culminâncias do poder e
da abundância ou para ser descido dela; nobre ou plebeu; para crescer sem
dificuldades ou para vegetar dificilmente. E porquê, todas estas diferenças?
Será Deus capaz de sentir felicidade criando nestas condições? Não, não é. O
mistério repousa na pesada e negra cortina que se fecha sobre o nosso tenebroso
passado, quando tomamos, de novo, um corpo terreno, ao nascer ou, melhor, ao renascer. Então, tudo esquecemos e por
razões que revelam a bondade da natureza! Mas a grande verdade é que todos os
nossos actos esperam por nós e tecem os nossos destinos futuros! O nosso porvir
depende do nosso passado… e do nosso presente. Em cada vida recolhemos os
frutos do que semeámos noutras, e assim os nossos destinos estarão, sempre, em
perfeita harmonia com o que fizemos, com os nossos procedimentos em vidas
passadas.
Enquanto tivermos culpas a resgatar renasceremos sempre,
até atingirmos a perfeição máxima.
F. M. R.
A palavra ekklesiastes, que a
versão dos Setenta usa para traduzir a palavra hebraica Qohelet, significa algo como “membro da reunião”, Pregador ou Orador
de uma assembleia. Na tese do autor, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, a
palavra hebraica que se traduz por “vaidade” tem o sentido de “etéreo”, ou “vazio”.
Na língua portuguesa a palavra “vaidade” relaciona-se com um termo latino (vanus) que aponta para a valorização excessiva do supérfluo
e, consequentemente, do progressivo esvaziamento da espiritualidade. Nesta
perspectiva, a tese do autor pode ter o sentido de “frivolidade das coisas
terrenas”. (N. do E.).
(1) e (2) - Genesis, Cap. III, n.º 19.
(3) e (4) - Genesis, Cap. I, n.ºs 26 e 27
(5) - Genesis, Cap. II, n.º 7.
(6) - Eclesiastes, Cap. III, n.ºs
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